BASES ECOLÓGICAS PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – ECOLOGIA URBANA

    BASES ECOLÓGICAS PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – ECOLOGIA URBANA

    Texto da Professora Cláudia Jacobi – Departamento de Biologia Geral UFMG)

    (http://www.somos.ufmg.br/professor/claudia-maria-jacobi)

    O SISTEMA URBANO É UM ECOSSISTEMA?
    Alguns consideram as cidades como ecossistemas por estarem sujeitas aos mesmos  processos que operam em sistemas silvestres. Outros argumentam que a despeito de as cidades possuírem algumas características encontradas em ecossistemas naturais, não podem ser consideradas ecossistemas verdadeiros, devido à influência do homem. O fato é que se definirmos ecossistema como um conjunto de espécies interagindo de forma integrada entre si e com o seu ambiente, as cidades certamente se encaixam nesta definição. As grandes cidades e outras áreas povoadas estão repletas de organismos. O construtor destes hábitats artificiais é o homem, mas uma infinidade de outras criaturas aproveitam e se adaptam a esses novos hábitats recém criados. Os organismos urbanos, incluindo o homem, também se relacionam com os outros organismos e estas interações podem ser estudadas, sob o ponto de vista conceitual, da mesma forma que relações ecológicas de ecossistemas naturais.
    Por outro lado, os centros urbanos se desenvolvem de forma diferente dos ecossistemas naturais. Alguns processos e relações ecológicas são mais intensos nas cidades. Um exemplo é a invasão de espécies. Outros são de menor importância, como poderia ser o caso da competição, enquanto que os mutualismos aparecem em porcentagem alta. Em outros casos, como o da sucessão ecológica, os processos são mascarados pela constante interferência humana.

    CARACTERÍSTICAS ENERGÉTICAS DOS ECOSSISTEMAS URBANOS
    A produtividade, e conseqüentemente a diversidade e complexidade dos ecossistemas, depende da obtenção de energia. A principal fonte de energia na maioria dos ambientes naturais é a solar. O sol atinge as áreas urbanas, mas a produção é baixa, pois estas dependem diretamente da quantidade de áreas verdes, que é comparativamente pequena, e do estágio de sucessão das comunidades vegetais. A sobrevivência das cidades, portanto, depende da importação de outros tipos de energia.
    Enquanto a grande maioria dos ecossistemas naturais tem seus próprios produtores de energia (plantas verdes) os quais sustentam uma certa biomassa de consumidores, as cidades possuem pouca área verde e, mesmo nesses casos, as plantas não são utilizadas para consumo humano, com exceção das hortaliças. Estas áreas verdes, no entanto, cumprem funções importantes como a de produzir oxigênio, esfriar o ar por meio da sua transpiração, absorver poluentes, servir como barreiras acústicas e satisfazer necessidades estéticas. As cidades tampouco têm um contingente suficiente de animais para consumo humano. Desta forma, sobrevivem da importação de alimento de outras regiões, muitas delas do outro lado do mundo.

    Cidades também precisam importar uma série de outros recursos para sobreviver. Entre eles contam-se água e outras matérias primas. Em troca pelos produtos necessários à sua sobrevivência, as cidades fornecem bens manufaturados, serviços, informação, tecnologia e formas de recreação. Ao mesmo tempo precisam se desfazer dos resíduos e do calor gerados por estas atividades. A entrada constante e maciça de matéria para o sustento da cidade muitas vezes supera a sua capacidade de eliminar resíduos, o que traz como conseqüência o aumento dos níveis de determinadas substâncias até o ponto em que passam a ser considerados poluentes. O problema do lixo e a sua degradação é um dos mais sérios nas grandes cidades. Os resíduos sólidos são geralmente depositados em áreas adjacentes aos centros urbanos, em aterros com diversos graus de segurança para evitar a contaminação do solo e dos lençóis freáticos. O problema do grande volume de resíduos gerados tem sido resolvido de forma parcial mediante programas de reciclagem de materiais como plástico, vidro, papel, metais, programas de compostagem, ou uso de material biodegradável. Trata-se, no entanto, de processos industriais caros e portanto economicamente inviáveis para muitos centros urbanos.
    BIODIVERSIDADE E RELAÇÕES INTERESPECÍFICAS
    Qualquer área urbana é formada por uma variedade de habitats, desde os semi-naturais até os que surgem como conseqüência direta da ocupação humana. A interferência do homem impõe um mosaico de pequenas paisagens adjacentes em uma área relativamente reduzida.
    Assim, o espectro de habitats nos centros urbanos é amplo: de parques municipais e florestas urbanas até grandes áreas de construção civil, industrial e aterros.
    Estas características de mosaico fazem com que a biodiversidade urbana possa ser mais alta do que as áreas rurais adjacentes. Alguns centros urbanos constituem ilhas de diversidade por servirem como refúgio de muitos animais que fogem de regiões devastadas. O complexo urbano oferece a estas espécies lugares apropriados para a sua sobrevivência, alimento e, não raramente, um local livre dos seus predadores e competidores naturais. No entanto, para que a espécie recém-chegada tenha sucesso como colonizadora é necessário que o ambiente urbano contenha as condições adequadas para a sua sobrevivência, como alimento e locais para reprodução. Naturalmente a abundância de muitas espécies está correlacionada negativamente com o grau de urbanização. Plantas, por exemplo, precisam de solos especiais ou de um certo tipo de polinizador para produzir sementes. Em outros casos a espécie pode se desenvolver somente em estágios avançados de sucessão ecológica, que em geral não ocorrem nas cidades.
    Entre as plantas melhor adaptadas às cidades encontram-se aquelas de pequeno porte, resistentes à poluição e pouco exigentes em termos de nutrientes, como são em geral as compostas e gramíneas.

    Um exemplo de grupo de vertebrados que se adapta bem às cidades é o das aves, pela sua grande capacidade de deslocamento e também pela plasticidade comportamental. As aves podem utilizar qualquer fragmento de área com vegetação disponível. Em muitos casos adaptaram-se ao convívio com o homem de forma estreita, utilizando o alimento que obtêm do mesmo e sobrevivendo em construções. Naturalmente, nem toda espécie de ave consegue se adaptar a áreas densamente povoadas, mas aquelas que conseguem atingem altos níveis populacionais. Exemplos típicos de aves extremamente adaptadas aos ambientes urbanizados são pardais e pombos, que utilizam até pedaços de arame para construir seus ninhos.
    Outros vertebrados altamente dependentes da presença humana são os domesticados. Já
    um bom exemplo de animais dependentes das atividades humanas mas que não foram introduzidos para domesticação são os ratos. Estes têm as características de espécies invasoras: plasticidade comportamental, alta capacidade de dispersão e alta capacidade reprodutiva, que é ampliada pela ausência de inimigos naturais. As cidades também oferecem maiores chances de hibridização ao quebrarem barreiras geográficas mediante a introdução de espécies de forma acidental ou para uso do homem. Estas podem entrar em contato com espécies aparentadas, e resultar em híbridos. O caso de híbridos de cão e coiote nos EUA é bem conhecido. Os coiotes aproximaram-se dos povoados devido à destruição do seu habitat natural. Entre os invertebrados típicos de cidades têm lugar destacado as baratas, formigas, barbeiros, cupins, traças, piolhos e mosquitos. Trata-se de espécies oportunistas ou diretamente vinculadas ao homem, muito bem adaptadas às cidades e de difícil controle.
    Todos os animais citados acima vivem em estreita associação com o homem, o que não significa que sejam controlados por este. Quando o crescimento populacional de uma espécie introduzida ou a sua atividade afeta alguma atividade humana, esta passa a ser considerada uma praga. A definição de praga depende de cada ponto de vista. Pragas são organismos considerados indesejáveis, e esta classificação varia com o tempo, local, circunstâncias e atitude individual. Plantas que na natureza são parte do ambiente podem ser vistas como ervas daninhas se danificam propriedades ou tornam-se competidoras de plantas ornamentais, o que freqüentemente ocorre em áreas urbanizadas.
    A introdução de espécies de outras regiões biogeográficas é um fenômeno universal, mas a proporção de espécies introduzidas que se estabelecem com sucesso é maior nas cidades do que em áreas rurais ou de florestas. Isto torna-se possível por vários motivos: 1) alimento disponível, 2) refúgio de inimigos naturais, 3) reintrodução constante feita pelo homem, intencional ou acidental, 4) hibridização entre espécies exóticas e nativas, 5) exploração de novos nichos.
    A taxa de imigração costuma ser mais alta do que a de extinção pelas constantes reintroduções, mas uma sucessão ecológica, em que as espécies dentro de uma comunidade vão sendo substituídas ao longo do tempo, raramente se verifica, pois as perturbações induzidas pelo homem são grandes e freqüentes. Os processos vinculados à sucessão ecológica estão altamente comprometidos, pois o homem age sobre estes continuamente, podendo interrompê-los ou moldá-los de acordo com a sua conveniência. Devido a esta interferência, o desequilíbrio ecológico dos ecossistemas urbanos é constante. As perturbações podem ser diretas, pela mudança da paisagem mediante construções, pavimentação, passagem de veículos, diversos tipos de controle sobre a vegetação como plantios, podas, uso de herbicidas, ou uma conseqüência destas, como deslizamentos de terra e inundações, erosão e diversas formas de poluição.

    Um dos principais componentes estruturadores de comunidades são as interações biológicas. Com relação às interações entre espécies, a competição costuma ser pouco importante na maioria das áreas urbanas. Isto se deve a que a quantidade de nichos é grande, as espécies que conseguem se adaptar encontram recursos suficientes e as cidades passam constantemente por transformações que são prejudiciais para muitas das espécies, fazendo regredir ou mudar estas interações dependendo das mudanças efetuadas. Mutualismos, no entanto, verificam-se em proporção mais alta do que em muitos ambientes naturais. Na maioria destes trata-se de uma dependência recíproca entre o homem e outras espécies domesticadas para seu proveito. Quanto à pressão de predação como força estruturadora da comunidade, esta não se verifica na sua totalidade pois a maior parte da biomassa para alimentar os diversos componentes vem de fora do sistema, mostrando uma alta dependência das áreas rurais, notadamente outro tipo de sistema antropogênico (gerado pelo homem), que são os agroecossistemas. A importação de alimento e a falta de ligação entre as comunidades dos diversos micro-habitats fazem com que seja difícil elaborar cadeias tróficas abrangentes dos sistemas urbanos.
    O MICROCLIMA URBANO
    As estruturas urbanas e a densidade e atividade dos seus ocupantes criam microclimas especiais. A pedra, o asfalto e outras superfícies impermeáveis que substituem a vegetação têm uma alta capacidade de absorver e re-irradiar calor. A chuva é rapidamente escoada antes que a evaporação consiga esfriar o ar. O calor produzido pelo metabolismo dos habitantes e aquele gerado pelas indústrias e veículos ajudam a aquecer a massa de ar. Estas atividades também liberam na atmosfera vapor, gases e partículas em grandes quantidades.
    Estes processos geram uma região de calor sobre as cidades onde a temperatura pode ser até 6ºC mais alta do que no ambiente circundante. Este fenômeno é mais marcante no verão em áreas temperadas, quando os prédios irradiam o calor absorvido.
    As cidades recebem menos radiação solar que áreas rurais adjacentes pois parte desta é refletida por uma camada de vapor, dióxido de carbono e matéria particulada. Esta mesma camada faz com que a radiação emitida pelo solo seja refletida de volta para a terra. As partículas no ar agem também como núcleos de condensação de umidade, produzindo um nevoeiro conhecido como ‘smog’ (do inglês ‘smoke’ + ‘fog’= fumaça + nevoeiro), a principal forma de poluição do ar.

    Normalmente o acúmulo de poluentes é carregado para o alto através das massas de ar, que sobre as cidades apresentam um gradiente de temperatura em que o chão é mais quente que as camadas superiores. No entanto, pode ocorrer que uma massa de ar mais quente que aquela sobre a cidade se instale imediatamente sobre esta, interrompendo o fluxo normal de ar para acima e impedindo que os poluentes e o calor se dissipem. Este fenômeno, mais freqüente no inverno e em cidades localizadas em vales, é conhecido com inversão térmica.
    Grandes cidades geralmente sofrem diariamente as conseqüências do smog. Aquelas sujeitas a smog industrial são chamadas de cidades de ar cinza e caracterizadas por um clima temperado, com invernos frios e úmidos. As atividades industriais e de aquecimento das residências produzem dois tipos principais de poluentes: partículas e óxidos de enxofre (impurezas contidas nos combustíveis). Estes óxidos reagem com o vapor atmosférico formando ácido sulfúrico, que corrói metais e outros materiais, além de ser perigoso para a saúde humana.
    As cidades sujeitas a smog fotoquímico (de ar marrom) geralmente têm clima mais quente e seco, e a maior fonte de poluição é a combustão incompleta de derivados de petróleo, o que favorece a formação de dióxido de nitrogênio, um gás amarelado. Na presença de raios ultravioletas este gás reage com hidrocarbonetos, formando uma série de poluentes gasosos conhecidos como oxidantes fotoquímicos.
    A maioria das grandes cidades sofrem de ambos os tipos de smog. As emissões de dióxido de enxofre e de nitrogênio em contato com o vapor do ar convertem-se rapidamente nos ácidos sulfúrico e nítrico, que podem ser carregados pelo distantes do onde foram gerados na forma de chuva ácida.

    Alguns métodos para controlar a emissão de óxidos de enxofre e de partículas que têm sido sugeridos são: economizar no consumo de energia, mudar as fontes de energia de combustíveis fósseis para energia solar, eólica ou geotérmica, retirar o enxofre do combustível antes ou depois da combustão e estabelecer impostos “ecológicos” sobre a emissão de poluentes.
    Entre os métodos sugeridos para reduzir a poluição por veículos destacam-se: otimizar o uso de veículos particulares, melhorar o transporte coletivo, utilizar motores elétricos e outros combustíveis como gás natural, hidrogênio e álcool, aumentar a eficiência do combustível, controlar a emissão de gases e de formação do smog.

    PROBLEMAS ECOLÓGICOS DAS GRANDES ÁREAS URBANAS
    Alguns dos aspectos mencionados anteriormente, como a importação de alimento e energia, são comuns a qualquer centro urbano, independentemente do seu tamanho. Outros, no entanto, acontecem de forma problemática somente nas grandes cidades. Entre estes últimos, foram mencionados a poluição do ar e o destino dos resíduos sólidos. A construção desordenada em áreas de risco e as deficiências no saneamento básico também afetam de modo mais drástico as grandes cidades.
    Um aspecto importante que deriva diretamente da alta densidade populacional é o da  transmissão de doenças. Antes que os humanos se tornassem sedentários com o advento da agricultura, as condições para a transmissão e persistência de doenças virais e bacterianas eram pouco adequadas, principalmente devido ao pequeno número de hospedeiros e seu isolamento.
    À medida em que os núcleos urbanos foram crescendo, os seus habitantes viraram reservatórios das doenças e a erradicação destas foi ficando mais complicada. O comércio e posteriormente as viagens intercontinentais propiciaram a introdução de doenças contra as quais as populações não eram imunes. Atualmente, apesar dos avanços da medicina, características como superpopulação, mudanças ambientais e intercâmbio intenso de mercadorias são fatores de risco que beneficiam o espalhamento de novas doenças ou novas formas de doenças conhecidas, principalmente aquelas como a gripe, cujos vírus têm uma alta taxa de mutação.
    Da forma em que existem atualmente, os sistemas urbanos são artificiais, imaturos e ineficientes em termos energéticos. Precisam da importação de grandes volumes de energia e alimento para a sua manutenção, e por isso não se auto-sustentam. Por outro lado, cidades têm caracteristicamente uma alta heterogeneidade espacial, o que proporciona uma alta diversidade.
    Embora isto pareça um contra-senso, casos de maior diversidade em cidades do que no ambiente natural em que estão inseridas são comuns. Como exemplo podemos citar povoamentos estabelecidos em regiões desertas ou áridas, em que água e outros recursos são importados e concentrados na urbe. A manutenção da biodiversidade urbana é importante não só para a própria sobrevivência do homem, mas também pelo seu valor intrínseco. Devido à forte ligação dos organismos urbanos com o homem, é necessário um envolvimento mais efetivo das ciências naturais com as sociais para integrar os conceitos ecológicos ao processo de planejamento urbano. Para haver esta integração, são necessárias mais pesquisas sobre quais são e como se organizam os processos ecológicos que agem nos ecossistemas urbanos.

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    Fonte:http://www.icb.ufmg.br/big/beds/arquivos/ecourbana.pdf